Bhoora, o empregado da família
Andei olhando algumas fotos do desfile de casamento da princesa Diana e, curiosamente, a única coisa que me impressionou em toda aquela tolice foram os belos cavalos, a dança jubilosa deles. Ao olhar para aqueles cavalos, lembrei-me de meu próprio cavalo. Nunca falei com ninguém sobre isso, nem mesmo para Gudia, que adora cavalos.
Eu não tinha só um cavalo; na verdade, tinha quatro. Um era o meu próprio – e vocês sabem como sou meticuloso... mesmo hoje em dia, ninguém pode dirigir os Rolls Royces. Meticulosidade! Eu era do mesmo jeito naquela época. Ninguém, nem mesmo o meu avô, tinha permissão de montar meu cavalo. É claro, eu tinha permissão de montar os cavalos de todos. Tanto meu avô como minha avó tinham um. Numa aldeia indiana era estranho uma mulher andar a cavalo, mas ela era uma mulher estranha... o que fazer? O quarto cavalo era usado por Bhoora, o empregado que sempre me seguia com a sua arma; à distância, é claro.
O destino é estranho; nunca machuquei ninguém em minha vida, nem mesmo em meus sonhos. Sou absolutamente vegetariano, mas o destino quis que desde a minha infância eu fosse seguido por um guarda. Não sei o motivo, mas desde Bhoora nunca estive sem um guarda. Mesmo hoje, meus guardas ou estão na frente ou atrás, mas sempre presentes. Bhoora começou todo o jogo.
Mesmo quando criança, podia perceber o motivo de Bhoora me seguir em seu cavalo a uma certa distância, pois por duas vezes houve tentativa de me raptar. Não sei por que alguém estaria interessado em mim, mas agora posso entender: meu avô, embora não muito rico para os padrões ocidentais, certamente era muito rico naquela aldeia.
Mesmo quando eu era jovem, na Índia, ainda era uma prática comum roubarem filhos de pessoas ricas e, depois, ameaçarem os pais, caso eles não pagassem, de cortar as mãos da criança. Se pagassem, então, poderiam salvar as mãos da criança. Algumas vezes a ameaça era de cegarem a criança, ou se os pais fossem realmente ricos, a ameaça era direta: a criança seria assassinada. Para salvar o filho, os pobres pais estavam dispostos a fazer qualquer coisa, fosse o que fosse.
Por duas vezes, tentaram me roubar. Duas coisas me salvaram: uma foi o meu cavalo, que era um árabe realmente forte; a segunda foi Bhoora, o empregado. Meu avô lhe ordenou que atirasse para cima, e não nas pessoas que tentassem me raptar – pois isso ia contra o jainismo. Mas havia a permissão de atirar para cima, a fim de assustá-los. É claro, minha avó cochichou nos ouvidos de Bhoora: “Não se importe com o que meu marido diz. Primeiro você pode atirar para cima, mas se isso não funcionar, lembre-se: se você não atirar nas pessoas, eu atirarei em você!”. E ela realmente era uma grande atiradora. Eu a vi atirando. E ela sempre foi precisa nos mínimos detalhes – não errava muito.
Nani era muito exata no que se refere a detalhes. Ela era sempre objetiva, e nunca dava voltas. Existem algumas pessoas que dão voltas e mais voltas, e a gente precisa adivinhar o que elas realmente querem. Essa não era a maneira dela; ela era exata, matematicamente exata. Ela disse a Bhoora: “Lembre-se, se você chegar em casa sem ele, apenas para dizer que ele foi raptado, atirarei em você imediatamente!”. Eu sabia, Bhoora sabia e meu avô sabia, pois, embora ela tenha dito isso nos ouvidos de Bhoora, não foi um sussurro; foi alto o suficiente para ser escutado por toda a aldeia. Ela queria dizer aquilo mesmo; ela não vivia brincando.
Meu avô olhou para o outro lado, e não pude resistir. Ri alto e disse: “Por que você está olhando para o outro lado? Você a ouviu! Se você é um jainista autêntico, diga para Bhoora não atirar em ninguém.”.
Mas, antes que meu avô pudesse dizer qualquer coisa, minha nani disse: “Eu disse a Bhoora por você também, então, fique quieto!”. Ela era uma mulher de tal ordem, que – eu a conhecia! – atiraria até mesmo em meu avô. Não quero dizer literalmente, mas metaforicamente, e isso é mais perigoso do que literalmente. Então, ele ficou quieto.
Por duas vezes fui quase raptado. Uma vez o meu cavalo me trouxe para casa e, de outra vez, Bhoora teve que disparar a arma, é claro que para cima. Talvez, se houvesse necessidade, ele atirasse na pessoa que estivesse tentando me raptar. Mas não houve necessidade, assim ele salvou a si e, também, a religião de meu avô.
Desde então, é estranho... Parece estranho, muito estranho, pois sempre fui absolutamente inofensivo para todos, e mesmo assim estive em perigo por muitas vezes. Muitos atentados foram feitos contra a minha vida. Sempre me perguntei, desde que a vida, mais cedo ou mais tarde, vai terminar por si mesma, por que alguém estaria interessado em colocar um fim a ela no meio. A que propósito isso pode servir? Se eu puder ser convencido desse propósito, posso parar de respirar neste exato momento.
Mas ela disse a Bhoora: “Se alguém tocar na minha criança, você não deve apenas atirar para o ar porque acreditamos no jainismo... Essa crença é boa, mas somente no templo. No mundo, temos que nos comportar da maneira do mundo, e o mundo não é jainista. Como então nos comportar de acordo com a nossa filosofia?”.
Posso ver sua lógica cristalina. Se você estiver falando com uma pessoa que não entende inglês, você não pode falar com ela em inglês. Se você lhe falar na língua dela, então, há mais possibilidade de comunicação. Filosofias são linguagens; deixe me assinalar isso claramente. As filosofias não querem dizer absolutamente nada – elas são linguagens. E no momento em que ouvi minha avó dizer a Bhoora “Quando um dakait tentar raptar o meu menino, fale na língua que ele entende e se esqueça de tudo sobre o jainismo.”, naquele momento, entendi. Embora não fosse tão claro para mim como passou a ficar mais tarde, deve ter sido bastante claro para Bhoora. Meu avô certamente entendeu a situação, pois fechou os olhos e começou a repetir o seu mantra: “Namo arihantanam namo... namo siddhanam namo...”.
Eu ri e a minha avó riu furtivamente; Bhoora, é claro, apenas sorriu. Mas todos entenderam a situação, e ela estava certa, como sempre...
Minha avó tinha a qualidade de estar sempre certa. Ela disse a Bhoora: “Você acha que esses dakaits acreditam no jainismo? E esse velho tolo...” – ela indicou o meu avô, que estava repetindo o seu mantra. Então ela disse: “Aquele velho tolo lhe disse para só atirar para cima, pois não devemos matar. Deixe que ele repita o mantra dele. Quem está mandando ele matar? Você não é jainista, é?”.
Naquele momento eu sabia instintivamente que se Bhoora fosse jainista ele perderia o seu emprego. Antes disso, nunca me importei se Bhoora era, ou não, jainista. Pela primeira vez fiquei preocupado com o pobre homem, e comecei a rezar; não sei para quem, pois os jainistas não acreditam em nenhum Deus. Nunca fui doutrinado em qualquer crença, mas ainda assim comecei a dizer dentro de mim: “Deus, se você existe, salve o emprego deste pobre homem.”. Vocês percebem o ponto? Mesmo então, eu disse: “Se você existe...”. Não posso mentir nem mesmo numa situação dessas.
Mas, misericordiosamente, Bhoora não era jainista. Ele disse: “Não sou jainista, então não me importo.”
Minha nani disse: “Então lembre-se do que eu lhe disse e não do que esse velho tolo lhe disse.”.
Na verdade, ela sempre usava este termo para o meu avô: “esse velho tolo” – e o reservei para Devageet. Mas aquele “velho tolo” está morto. Minha mãe... minha avó está morta. Desculpem-me. Novamente disse “minha mãe”. Realmente não posso acreditar que ela não era a minha mãe, mas apenas a minha avó.
Quando ela falou aquilo para Bhoora, eu sabia que ela queria dizer aquilo mesmo, e Bhoora também sabia. Quando meu avô começou o mantra, eu sabia que ele também tinha entendido que ela falava a sério.
Fui atacado duas vezes, e para mim foi uma alegria, uma aventura. Na verdade, no fundo, eu queria saber o que significava ser raptado. Essa sempre foi a minha característica; vocês podem chamar de meu caráter. Essa é uma qualidade que muito me alegra. Eu ia no meu cavalo para a floresta que nos pertencia. Meu avô prometeu que seria legado a mim tudo o que ele tinha, e ele cumpriu a sua palavra. Ele nunca deu um único paisa(*) a mais ninguém.
Ele tinha milhares de acres de terra. É claro, naqueles dias, elas não tinham qualquer valor, mas valor não me importa. Era tão bonito! Aquelas árvores altas, um lago grande... E no verão, quando as mangas ficavam maduras, ficava tudo tão perfumado! Eu ia até lá, no meu cavalo, com tanta freqüência, que ele se acostumou com o caminho. ...
Eu costumava montar a cavalo, e ao ver aqueles cavalos no desfile de casamento da princesa Diana, não pude acreditar que a Inglaterra pudesse ter cavalos tão lindos. ...
Todas aquelas pessoas, e pude amar somente os cavalos! Eles eram as pessoas reais. Que alegria! Que marcha! Que dança! Simplesmente pura celebração. Imediatamente me lembrei de meu próprio cavalo, e daqueles dias... a fragrância deles ainda está presente. Posso ver o lago... e eu, criança, montado no cavalo, nos bosques. Posso sentir o cheiro das mangas, das árvores neem, dos pinheiros e também o cheiro do meu cavalo.
Ainda bem que naqueles dias eu não era alérgico a cheiros, ou – quem sabe? – podia ser alérgico, mas estar inconsciente disso. É uma estranha coincidência: o ano de minha iluminação foi também o ano de eu ficar alérgico.
(*) Paisa – unidade monetária indiana: uma rupia tem cem paisas.
Glimpses of a Golden Childhood, #10
​