A morte de Bhoora
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Bhoora morreu, simplesmente, porque não podia conceber viver num mundo sem o seu senhor. Ele simplesmente morreu, relaxou na morte. Ele veio conosco para a aldeia de meu pai, pois estava dirigindo o carro de boi. Quando por alguns momentos ele não ouviu mais nada, nenhuma palavra vinda da parte coberta da carroça, ele me perguntou: "Beta" - isso significa filho -, "está tudo bem?".
Repetidamente Bhoora perguntava: "Por que esse silêncio? Por que ninguém está falando?". Mas ele era o tipo de homem que não olharia para dentro da cortina que o separava de nós. Como ele poderia olhar lá dentro, estando minha avó ali? Esse era o problema, ele não podia olhar, mas repetidamente perguntava: "O que está havendo? Por que todos estão em silêncio?".
Eu disse: "Não há nada de errado; estamos desfrutando o silêncio. Nana quer que a gente fique em silêncio.". Isso era uma mentira, pois nana estava morto, mas num certo sentido era verdade. Ele estava em silêncio, e aquela era uma mensagem para ficarmos em silêncio.
Só depois eu disse: "Bhoora, está tudo bem, somente que nana se foi.".
Ele não pôde acreditar naquilo, e falou: "Então como tudo pode estar bem? Sem ele, eu não posso viver.". E em vinte e quatro horas ele morreu. Como se uma flor tivesse se fechado... recusando-se a permanecer aberta ao sol e à lua, por sua própria conta. Tentamos de tudo para salvá-lo, pois agora estávamos numa cidade maior, a cidade de meu pai.
A cidade de meu pai era apenas uma pequena cidade, é claro que considerando estar ela na Índia. A população era de apenas vinte mil pessoas. Ela tinha um hospital e uma escola, e tentamos tudo o que foi possível para salvar Bhoora. O médico do hospital ficou perplexo, pois não podia acreditar que aquele homem fosse indiano; ele parecia tão europeu... Ele deve ter sido uma aberração da biologia, eu não sei. Algo deve ter dado certo. Como se diz "algo deve ter dado errado", cunhei a frase "algo deve ter dado certo" - ...por que sempre "errado"?
Bhoora estava em choque devido à morte de seu senhor. Precisamos mentir para ele, até chegarmos na cidade. Somente quando chegamos na cidade e o cadáver foi tirado do carro de boi é que Bhoora viu o que tinha acontecido. Ele então fechou os olhos e nunca os abriu novamente; ele disse: "Não posso ver o meu amo morto.". E aquele era somente um relacionamento entre empregado e patrão. Mas surgiu entre eles uma certa intimidade, uma certa proximidade indefinível. Ele nunca abriu os olhos novamente - disso posso dar testemunho. Ele viveu somente mais algumas horas, e entrou em coma antes de morrer.
Antes que meu avô morresse, ele disse à minha avó: "Tome conta de Bhoora; sei que você vai tomar conta de Rajá - não preciso lhe dizer isso -, mas tome conta de Bhoora. Ele me serviu como ninguém mais poderia fazê-lo.".
Eu disse ao médico: "O senhor pode entender o tipo de devoção que deve ter existido entre esses dois homens?".
O médico me perguntou: "Ele é europeu?".
Respondi: "Ele parece.".
O médico disse: "Não seja astuto. Você é uma criança com somente sete ou oito anos de idade, mas muito astuta. Quando perguntei se o seu avô estava morto, você disse que não, e isso não era verdade.".
Eu respondi: "Não, era verdade! Ele não está morto. Um homem com um tal amor não pode estar morto. Se o amor puder estar morto, então, não haverá esperança para o mundo. Não posso acreditar que um homem que respeitou a minha liberdade, que respeitou tanto a liberdade de uma criança, esteja morto somente porque não pode respirar. Não posso igualar os dois, não respirar e morte.".
O médico europeu olhou para mim desconfiado, e disse a meu tio: "Esse garoto ou vai ser filósofo ou vai enlouquecer.". Ele estava errado: sou os dois juntos. Não há a questão de "ou". Não sou Soren Kierkegaard; não há questão de "ou". Mas me pergunto por que ele não pôde acreditar em mim... uma coisa tão simples. ...
Eu não pude compreender por que o médico não pôde acreditar que meu avô não estava morto. Eu sabia e ele sabia que, no que tange ao corpo, tinha acabado; não havia querela sobre isso. Mas havia algo mais do que o corpo - no corpo e, contudo, não do corpo. O amor o revela; a liberdade dá asas a isso, para pairar no céu.
Glimpses of a Golden Childhood, 13
... Meu avô havia confiado a Bhoora todas as chaves e todos os assuntos da casa e da terra.
Muitos anos mais tarde, quando eu estava novamente morando em Bombaim, o filho de Bhoora veio a mim e me deu as chaves, e disse: "Estávamos esperando vocês virem, mas ninguém veio. Tomamos conta da terra e cuidamos das colheitas e separamos todo o dinheiro.".
Eu lhe dei as chaves de volta e lhe disse: "Tudo agora pertence a vocês. A casa, as colheitas e o dinheiro pertencem a vocês; eles são seus. Sinto muito por não saber disso antes, mas nenhum de nós queria voltar e sentir a dor.".
Glimpses of a Golden Childhood, #3
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