Uma infância não corrompida
Eu era uma criança solitária, porque fui educado pelo meu avô e avó maternos – não fiquei com meu pai e mãe. Aquelas duas pessoas idosas eram sozinhas e queriam uma criança que pudesse ser a alegria dos seus últimos dias. Assim, meu pai e minha mãe concordaram: eu era o filho mais velho, o primogênito; então, eles me enviaram.
Não me lembro de nenhum relacionamento com a família de meu pai naqueles anos iniciais da minha infância. Vivi com aqueles dois homens velhos – meu avô e seu velho empregado, que era realmente um belo homem – e minha velha avó. Eram essas três pessoas. E a diferença de idade era tão grande! Eu ficava absolutamente só. Não havia companhia, não podia haver companhia. Eles fizeram de tudo para serem tão amigáveis comigo quanto possível, mas era simplesmente impossível.
Eu fiquei sozinho. Não podia dizer coisas para eles. Não tinha mais ninguém, porque, naquele pequeno vilarejo, minha família era a mais rica; e era uma vila tão pequena – não mais do que duzentas pessoas ao todo – e tão pobre, que meus avós não permitiam que me misturasse com as crianças da vila. Elas eram sujas e, é claro, eram quase mendigos. Assim, não havia nenhum jeito de ter amigos. Isso causou um grande impacto. Em toda a minha vida, eu jamais tive um amigo, jamais conheci alguém para ser um amigo. Sim, conhecidos eu tive.
Naqueles primeiros anos vivi tão sozinho, que comecei a gostar disso – e é realmente um deleite. Assim, não foi uma maldição para mim. Provou-se ser uma bênção. Comecei a desfrutar aquilo e comecei a me sentir auto-suficiente. Não dependia de ninguém.
Nunca me interessei por jogos, pela simples razão de que, na minha infância, não havia nenhum jeito de jogar, não havia ninguém com quem jogar. Ainda posso me ver naqueles primeiros anos, simplesmente sentado.
Tínhamos um lindo lugar onde ficava nossa casa, bem em frente a um lago. Quilômetros de extensão, aquele lago... E era tão belo e tão silencioso! Só de vez em quando se via uma garça voando, ou fazendo cantos de acasalamento, e a paz era perturbada; fora isso, era quase o lugar perfeito para meditação. E quando a paz era perturbada pelo canto de acasalamento de um pássaro, logo depois a paz se aprofundava, ficava bem mais profunda.
O lago era cheio de flores de lótus, e eu podia ficar sentado ali durante horas, tão contente comigo mesmo, como se o mundo não importasse: os lótus, as garças brancas, o silêncio... E meus avós estavam bem cientes de uma coisa: de que eu desfrutava minha solitude. Eles continuamente viam que eu não tinha nenhum desejo de ir ao vilarejo para me encontrar com qualquer pessoa, ou de conversar com alguém. Mesmo quando eles queriam conversar, minhas respostas eram “sim” ou “não” – eu não estava interessado em conversar. Assim, eles estavam cientes de uma coisa: que eu gostava da minha solitude, e que era dever sagrado deles não me perturbarem.
Dessa forma, durante sete anos continuamente, ninguém tentou corromper minha inocência – não havia ninguém. Aquelas três pessoas idosas que moravam na casa, o empregado e meus avós, me protegiam de todos os modos possíveis, para que ninguém pudesse me perturbar. Na verdade, à medida que crescia, comecei a me sentir, um pouco embaraçado, pelo fato de que, por minha causa, eles não podiam conversar, não podiam ser normais como todo mundo.
Era simplesmente a situação oposta... Isso acontece com as crianças, quando você lhes diz: “Fique calado, porque seu pai está pensando, seu avô está descansando. Fique quieto, sente-se e fique calado!”. Na minha infância, aconteceu o oposto. Mas eu não posso responder nem por que, nem como; simplesmente aconteceu. É por isso que digo que simplesmente aconteceu: o crédito não é meu.
Aqueles três velhos viviam fazendo sinais um para os outros: “Não o atrapalhe! Ele está gostando tanto!”.
E eles começaram a gostar do meu silêncio. O silêncio tem sua vibração própria. Ele é infeccioso, principalmente o silêncio de uma criança, que não é forçado, que não vem porque você diz “vou lhe bater se você fizer barulho”. Não, isso não é silêncio. Isso não criará a vibração de alegria que estou falando: a de quando uma criança fica em silêncio por conta própria, deleitando-se sem nenhum motivo - sua felicidade é não-causada. Isso cria grandes ondas ao redor.
Num mundo melhor, todas as famílias aprenderão das crianças. Vocês têm muita pressa de ensinar-lhes. Ninguém parece aprender com elas, e elas têm muito a lhes ensinar. E vocês não têm nada para lhes ensinar.
Só porque você é mais velho e poderoso, você começa a fazê-las exatamente como você, sem jamais pensar sobre o que você é, onde você chegou, qual o seu status no mundo interior. Você é um pobre pedinte – e quer o mesmo para seu filho também? Mas ninguém pensa; caso contrário, aprenderiam com as crianças. As crianças trazem muito do outro mundo, porque elas ainda são novas, recém-chegadas. Elas ainda carregam o silêncio do útero, o silêncio da própria existência.
Assim, foi uma coincidência que durante sete anos eu tenha permanecido sem perturbação – ninguém para ralhar comigo, para me preparar para o mundo dos negócios, da política, da diplomacia. Meus avós estavam mais interessados em deixar-me o mais natural possível – principalmente minha avó. Ela é uma das causas – essas pequenas coisas afetam todos os seus padrões de vida –, ela é uma das causas do meu respeito para com todo o sexo feminino.
Ela era uma mulher simples, sem instrução, mas imensamente sensitiva. Ela deixou claro para meu avô e o empregado: “Nós todos vivemos um certo tipo de vida que não nos levou a lugar nenhum. Estamos vazios como sempre, e agora a morte está chegando perto.” Ela insistia: “Deixe esta criança ficar sem ser influenciada por nós. Que influência podemos oferecer...? Podemos apenas fazê-lo como nós, e nós não somos nada. Dêem-lhe a oportunidade de ser ele mesmo.”.
Meu avô – eu os ouvi discutindo à noite, pensando que eu estava dormindo – dizia para ela: “Você está me dizendo para fazer isso, e eu estou fazendo. Mas ele é filho de outra pessoa e, mais cedo ou mais tarde, ele terá de ir para os pais. O que eles dirão? Vocês não lhe ensinaram a ter modos, etiqueta, ele é absolutamente selvagem!”.
Ela disse: “Não se preocupe com isso. Neste mundo inteiro, todos são civilizados, têm educação, etiqueta, mas qual é o ganho? Você é muito civilizado. O que você ganhou com isso? No máximo, os pais dele vão ficar com raiva de nós. E daí? Deixe que fiquem com raiva – eles não podem nos prejudicar por isso. E, quando isso suceder, a criança estará tão forte, que eles não poderão mudar o curso da vida dela.”.
Sou tremendamente grato àquela velha mulher. Meu avô vivia preocupado de que, mais cedo ou mais tarde, ele iria ser responsabilizado: “Eles dirão: ‘Deixamos nosso filho com você e você não lhe ensinou nada!’.”.
Minha avó não permitiu... – porque havia uma homem no vilarejo que poderia pelo menos ter-me ensinado as primeiras letras, matemática, um pouco de geografia. Ele era instruído até o quarto ano – as quatro primeiras séries. Isso é o que era chamado de instrução primária na Índia. Mas ele era o homem mais instruído na cidade.
Meu avô bem que tentou: “Ele pode vir aqui e pode lhe ensinar. Pelo menos ele saberá o alfabeto, um pouco de matemática; assim, quando ele for para seus pais, eles não dirão que nós desperdiçamos os sete anos completamente.”.
Mas minha avó disse: “Deixem que façam o que quiserem depois dos sete anos. Durante sete anos ele tem de ser apenas seu eu natural, e nós não vamos interferir.”. E o argumento dela era sempre este: “Você sabe o alfabeto, e daí? Você sabe matemática, e daí? Você ganhou um pouco de dinheiro; você quer que ele também ganhe um pouco de dinheiro e viva como você?”.
Isso era o bastante para manter aquele velho calado. O que fazer? Ele ficava atrapalhado, porque não podia argumentar, e ele sabia que seria responsabilizado, não ela, porque meu pai perguntaria a ele: “O que você fez?”. E realmente esse teria sido o caso, mas felizmente ele morreu antes que meu pai pudesse lhe perguntar.
Meu pai vivia dizendo: “Aquele velho é o responsável, ele estragou a criança.”. Mas agora eu era forte o bastante, e eu deixei claro para ele: “Diante de mim, nunca diga uma palavra contra meu avô materno. Ele me salvou de ser estragado por você – essa é verdadeira raiva que você tem. Mas você tem outros filhos – estrague-os. E no fim, você dirá quem está estragado.”.
Ele tinha outros filhos, e mais e mais filhos estavam a caminho. Eu costumava provocá-lo: “Por favor, traga mais um filho, faça uma dúzia. Onze filhos!? As pessoas perguntam: ‘Quantos filhos?’. Onze não parece certo; uma dúzia é mais impressionante.”.
E nos últimos anos, eu lhe dizia: “Você está estragando todos os seus filhos; eu sou selvagem e permanecerei selvagem.”.
O que você vê como inocência não é nada mais do que ser selvagem. O que você vê como claridade não é nada mais do que ser selvagem. De algum modo eu permaneci fora das garras da civilização. E uma vez que estava forte o suficiente... E é por isso que as pessoas insistem: “Domine a criança, não perca tempo. Quanto mais cedo se torce o pepino, mais fácil!”. Uma vez que a criança se torne forte o suficiente, então, torcê-la de acordo com seus desejos será difícil.
E a vida tem ciclos de sete anos. Por volta dos sete anos, a criança está perfeitamente forte – agora então, não se pode fazer mais nada. Agora ela sabe aonde ir, o que fazer. É capaz de argumentar. É capaz de ver o que é certo e o que é errado. E sua claridade estará no clímax quando ela tiver sete anos. Se você não perturbar seus anos iniciais, então, aos sete ela será tão cristalina em relação a tudo, que toda a sua vida será vivida sem qualquer arrependimento.
Eu vivi sem nenhum arrependimento. Tentei descobrir: Fiz alguma coisa errada alguma vez? Não que as pessoas tenham pensado que tudo o que eu fiz estivesse certo - esse não é o ponto. Eu nunca achei que alguma coisa que tivesse feito estava errada. O mundo todo poderia pensar que aquilo estava errado, mas para mim havia uma certeza absoluta de que aquilo estava certo; aquilo era a coisa certa a ser feita.
Assim, não existe a questão de se arrepender a cerca do passado. E, quando você não tem de se arrepender sobre o passado, você está livre dele. O passado o mantém emaranhado como um polvo, porque você continua sentindo: “Eu não devia ter feito aquilo”, ou “Eu devia ter feito aquilo e não fiz.”... Todas essas coisas vão lhe puxando para trás.
Eu não vejo nada atrás de mim, nenhum passado. Se digo algo sobre meu passado, é simplesmente memória factual, não tem nenhum envolvimento psicológico nisso. Eu estou lhes contando como se estivesse lhes falando sobre uma outra pessoa. É simplesmente factual – não tem nada a ver com um envolvimento pessoal meu. Poderia ter ocorrido a outra pessoa, deve ter acontecido a outra pessoa.
Assim, lembrem-se, uma memória factual não é escravizante. A memória psicológica é. E a memória psicológica é criada a partir de coisas que você pensa – ou esteve condicionado a pensar – que eram erradas e você as fez. Então, há uma ferida, uma ferida psicológica.
From Darkness To Light, # 2