Um menino travesso
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Na aldeia da minha nani eu vivia continuamente ou no lago ou no rio. O rio era um pouco afastado, talvez duas milhas; então, mais freqüentemente, eu tinha que escolher o lago. Mas de vez em quando eu ia até o rio, porque as qualidades de um rio e de um lago são completamente diferentes. Um lago, de um certo modo, é morto, fechado, sem fluxo, sem ir a lugar nenhum absolutamente, estático. Esse é o significado da morte: ela não é dinâmica.
O rio está sempre fluindo, correndo para algum destino desconhecido, talvez sem saber nada desse destino, mas ele chega lá, sabendo ou sem saber – ele alcança a meta. O lago nunca se move. Ele permanece onde está, dormente, simplesmente morrendo, morrendo a cada dia – não existe ressurreição. Mas o rio por menor que seja, é tão grande quanto o oceano, porque cedo ou tarde ele vai se tornar o oceano.
Eu sempre amei a sensação do fluxo: indo, indo... aquele fluxo, aquele movimento continuo... a vivacidade. Assim, embora o rio ficasse a duas milhas de distância, eu de vez em quando ia lá, só para sentir o gosto.
Glimpses of a Golden Childhood, #27
Eu costumava nadar no lago. Naturalmente meu avô tinha medo, e colocou um homem estranho, num barco, para me proteger. Naquela vila primitiva vocês não podem conceber o que significava um “barco”. É chamado de dongi. Não é nada mais do que o tronco oco de uma árvore. Não é um barco comum; é redondo, e este é o perigo: a menos que a pessoa seja especialista, ela não pode remá-lo. Ele pode virar a qualquer momento; apenas um pouco de desequilíbrio e você se foi para sempre. É muito perigoso.
Aprendi equilíbrio remando um dongi. Nada poderia ser mais útil. Aprendi o “caminho do meio”, pois a pessoa precisa estar exatamente no meio: deste lado, e você está perdido; daquele lado, e você está perdido. Você não pode nem mesmo respirar; e precisa ficar absolutamente em silêncio. Somente então você pode remar o dongi.
Glimpses of a Golden Childhood, #3
Durante aqueles primeiros anos quando vivi com meu avô, eu estive absolutamente protegido de qualquer punição. Ele nunca disse “faça isso” ou “não faça aquilo”. Pelo contrário, ele colocou o seu empregado mais obediente, Bhoora, a meu serviço, para me proteger. Bhoora carregava uma arma de fogo muito primitiva, e me seguia à distância, mas isso era suficiente para amedrontar os aldeãos, era suficiente para permitir-me fazer tudo o que quisesse.
Qualquer coisa que se possa imaginar... como andar de costas num búfalo, com Bhoora me seguindo. ...
Principalmente em minha vila, e em toda a Índia, ninguém anda de búfalo. Mas Deus sabe, e somente Deus sabe, como descobri a idéia – nem eu sei – de sentar num búfalo em praça pública, e de costas para frente. Presumo que seja porque sempre gostei de qualquer coisa absurda. ...
Aqueles primeiros anos, se me pudessem ser dados novamente, eu estaria pronto para nascer de novo. Mas vocês sabem e eu sei, nada pode ser repetido. É por isso que estou dizendo que estaria pronto a nascer de novo; senão, quem ira querer... - muito embora aqueles dias tenham sido repletos de beleza. ...
Eu era tão travesso! Não posso viver sem isso – é meu nutrimento. Posso compreender o velho homem, meu avô, e o problema que a minha travessura lhe causou. Durante todo o dia ele se sentava em seu gaddi – o nome que se dá na Índia à poltrona de uma pessoa rica – escutando menos os seus fregueses e mais os que iam reclamar. Mas ele costumava dizer-lhes: “Estou pronto para pagar por qualquer prejuízo que ele tenha dado, mas, lembre-se, não vou puni-lo.”.
Talvez a sua própria paciência comigo, uma criança travessa... Nem mesmo eu poderia tolerá-la. Se uma criança dessa me fosse entregue, e por anos... meu Deus! Em poucos minutos eu jogaria a criança porta afora para sempre.
Talvez aqueles anos tenham produzido um milagre para o meu avô; aquela imensa paciência compensou. Ele ficou cada vez mais e mais silencioso; eu via isso crescer a cada dia. De vez em quando eu dizia: “Nana, você pode me punir, você não precisa ser tão tolerante.”. E, vocês podem acreditar, ele chorava! Lágrimas vinham de seus olhos, e ele dizia: “Puni-lo? Não posso fazer isso. Posso me punir, mas não a você.”.
Nunca, por um único momento, vi em seus olhos sequer uma sombra de raiva dirigida a mim... – e, acreditem-me, fiz tudo o que mil crianças poderiam fazer. Pela manhã, ainda antes do desjejum, já estava fazendo travessuras, e continuava assim até tarde da noite. Algumas vezes eu voltava para casa muito tarde – três horas da manhã. Mas que homem que ele era! Ele nunca disse: “Você está chegando muito tarde. Essa não é hora de uma criança chegar em casa.”. Não, nem mesmo uma vez. Na verdade, na minha frente, ele evitava olhar o relógio da parede.
Glimpses of a Golden Childhood, #05
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